orfeu mito musica e transformacao

MITO, MÚSICA E TRANSFORMAÇÃO: ORFEU CONTINUA DESCENDO AO HADES

Posted by - Janeiro 02, 2023

Gostaria de compartilhar com vocês um artigo que eu escrevi e que foi publicado na 5ª Edição da Revista Eletrônica Mitologia Aberta (@mitologiaaberta) sob o título Mito, Música e Transformação: Orfeu continua descendo ao Hades. Esse artigo é fruto de minha experiência e pesquisa como psicólogo e músico.


Agradeço demais a oportunidade, a confiança e o convite oferecidos pelos queridos @felipeoliveiraterapeuta e @larissadiaspsicoterapia! Muito obrigado!! É sempre um prazer e ao mesmo tempo desafiador falar sobre esses dois caríssimos temas.

Link do artigo

Artigo completo:

MITO, MÚSICA E TRANSFORMAÇÃO: ORFEU CONTINUA DESCENDO AO HADES

Julio César Nunes Ito[1]

Introdução

A música, desde os tempos primordiais, é sentida como portadora de propriedades mágicas que tocam a alma humana. Basta que lembremos de uma experiência um tanto quanto coletiva: quando nos damos conta, já estamos batendo os pés ou mexendo as mãos e dedos, tentando acompanhar o ritmo de uma música. A sua etimologia talvez esclareça melhor esse atributo mágico: a palavra música é habitada pelas nove musas gregas, as divindades da música na Mitologia Grega. Elas são filhas da união de Zeus, o regente do Olimpo, com Mnemosine, a titânide da memória. Nesse sentido, a música é concebida como a arte das musas.

Feito essa breve introdução mitológica, o que nos interessa neste texto é uma figura mítica em especial: Orfeu, exímio músico e poeta, filho de Calíope – a primeira musa e a mais importante – com o rei Eagro. Sua excelência musical era tal que acalmava com amorosidade os corações raivosos de homens irados, os animais silvestres faziam fila para segui-lo, a natureza curvava seus troncos e galhos para ouvi-lo e, numa fase posterior de seu mito, interrompeu as ininterruptas punições no Hades (BRANDÃO, 1997; GRIMAL, 2014).

Através do mito de Orfeu, espero poder nesse artigo continuar o resgate e construção do trabalho formalmente estabelecido no ano de 2018[2] sobre a relação da música com as profundezas da alma.

A descida musical ao mundo das trevas

Como já introduzido, Orfeu descende da mais importante das nove musas: Calíope. É filho do rei Eagro e, em algumas variantes do mito, seu pai é o deus Apolo. Paternidades à parte, seu próprio nome (Orpheus) já contém algo de seu mito: em grego, “orphnós” é obscuro, e “órphne”, obscuridade (BRANDÃO, 1997). Ele é apaixonado pela sua amada Eurídice, uma dríade (ninfa das árvores). Considerava-a como sua dimidium animae eius, sua alma metade (BRANDÃO, 1997). Os dois se casam após o retorno de Orfeu da viagem dos Argonautas. Certo dia, Eurídice estava a passear à beira de um rio até que Aristeu, o apicultor, a avista e começa a persegui-la na tentativa de violá-la. Eurídice corre e, no meio da fuga, pisa em uma serpente que lhe desfere uma picada mortal. Eurídice está morta. Orfeu, desolado. Inconsolável, ele decide buscar sua amada no mundo das trevas. Empunha sua lira e parte para a sua jornada em direção ao Hades: local que somente deuses como Hermes transitam livremente ou os mortos que só tem passagem de ida.

Para começar, Orfeu precisa adentrar o barco de Caronte, o guia que conduz as almas ao portão do mundo das trevas. Somente os mortos[3] possuem esse acesso, porém, Orfeu estava bem vivo. Chegando lá, contou sua história e tocou sua lira que imediatamente encantou o barqueiro infernal. Este o conduziu ao portão do Hades guardado pelo terrível Cérbero, o cão de três cabeças. O cão tinha a função de guardar a entrada dos vivos e, por outro lado, impedir que os mortos saíssem de lá. Mais uma vez, exercendo sua atividade musical, Orfeu encanta a terrível fera mitológica e a coloca para dormir. Adentrando o submundo, ele se encontra com os regentes do mundo das trevas: Hades e Perséfone. Ambos se comovem com a atitude órfica e concedem permissão para o retorno de Eurídice com uma única condição: que, no caminho infernal de retorno, Orfeu fosse seguido por Eurídice e que ele não olhasse para trás, não importando o que acontecesse, enquanto o casal não tivesse deixado completamente o mundo das trevas.

No mito, em sua forma mais regular, Orfeu ao chegar próximo à saída do Hades é perturbado por uma grande inquietação que o impulsiona a olhar para trás e a perder Eurídice para sempre. Em algumas variantes do mito, Orfeu é bem-sucedido em resgatar sua amada. De todo modo, o interessante aqui não é nos certificarmos a respeito do sucesso ou da falha de Orfeu na empreitada do resgate de sua alma metade, mas sim em nos atentarmos que em ambos os casos ocorre o movimento de descida às profundezas por amor à Eurídice através da musicalidade.

É comum que um único mito abarque uma série de mitologemas ou motivos que são temas que se repetem sempre e de novo como a descida, o herói sendo engolido pelo dragão-baleia, a criança divina, o desmembramento, a queda do rei, o renascimento etc. O mito de Orfeu continua após sua saída do Hades e contempla diversos mitologemas, porém, para esse texto em questão, valer-me-ei do motivo mitológico da descida ao mundo das trevas que, segundo Jung (2013, para. 80) “expressa o mecanismo da introversão da mente consciente em direção às camadas mais profundas da psique inconsciente”. O mitologema da descida é conhecido pelos gregos como katábasis: de maneira geral, a pessoa para ser iniciada deve descer ao mundo das trevas e essa dinâmica exerce uma função ritual de iniciação onde simbolicamente ocorre sua morte para que então possa emergir renovada (BRANDÃO, 1997).

Amplificador musical

Ao contrário de alguns mal entendidos, o método da amplificação proposto por Jung não é uma soberba demonstração de erudição. A amplificação “[…] consiste em simplesmente estabelecer paralelos” (JUNG, 2013, para. 173). Tem como objetivo decifrar e enriquecer a compreensão e precisão sobre os possíveis significados de um determinado fenômeno psíquico – imagens, sonhos, sintomas, devaneios, obras de arte, filmes – que se apresenta de forma obscura para a consciência.

A “amplificatio” recomendada sempre que se trate de uma vivência obscura, cuja vaga insinuação deva ser multiplicada e ampliada através de um contexto psicológico a fim de tornar-se compreensível.

(JUNG, 2012, para. 403)

Ou seja, a amplificação nos ajuda a lançar luzes no conteúdo que se pretende compreender através de imagens semelhantes encontradas no legado coletivo da alma humana: mitos, contos de fada, contos populares, literatura, música etc. “Aí tentamos colocar a fórmula que adquirimos através do conhecimento de outros textos frente à passagem que nos trouxe dúvida” (JUNG, 2013, para. 173).

Musicalmente, o método de amplificação pode ser comparado à seguinte situação: uma guitarra desplugada, caso seja tocada, será uma fonte sonora, porém, de um som embrulhado, sem cor, sem brilho, inespecífico, obscuro e, dependendo do guitarrista, teremos maior dificuldade em compreender do que se trata sua sonoridade, pois ela foi feita para tocar de forma elétrica – daí no inglês a denominação de electric guitar. Quando “plugamos” uma guitarra num amplificador, – caixa de som elétrica – o som consequentemente ganhará mais volume, maior precisão e definição, mais cores e, o mais importante: tudo isso sem perder o conteúdo sonoro base. Tudo que é tocado será amplificado pela caixa de som. Ou seja, não há um afastamento do conteúdo e sim uma aproximação dele.

Fazendo um teste nesse amplificador podemos tocar algumas notas a respeito da música: na obra A Metamorfose de Franz Kafka, a irmã do protagonista toca violino e sua música o faz caminhar até a sala; no romance Musashi de Eiji Yoshikawa, o protagonista rōnin (samurai peregrino) é atraído pela melodia de uma flauta durante uma noite em que tenta se refugiar; os marinheiros são seduzidos pelos cantos das sereias; e assim poderíamos continuar ad aeternum com uma série de imagens semelhantes que, como pudemos verificar pela amplificação, estão tratando de um tema em comum: a propriedade da música de enfeitiçar o ouvinte.

Voltando ao lendário músico e poeta, façamos mais uma amplificação: o signo (glifo) astrológico de Orfeu é caracterizado por dois semicírculos em oposição, unidos nas respectivas bases por uma haste horizontal e uma linha vertical descendo do meio dessa haste (Figura 1).

Figura 1 – glifo astrológico de Orfeu

Fonte: autor.

Os semi-círculos representam a receptividade – nesse caso, para ambos os lados – bem como a alma: duas almas em oposição. O que ajuda a nossa amplificação em questão é o fato de Orfeu considerar Eurídice sua dimidium animae eius. A meia-lua também se refere a uma relação por meio do sentimento. Orfeu de um lado, Eurídice de outro. Orfeu como ego em busca de sua Eurídice. Aqui, ambos estão em oposição, porém, faz-se importante lembrar que Orfeu decide resgatar Eurídice e, para isso, empunhando sua lira (Figura 2), realiza a descida ao Hades.

Figura 2 – desenho de uma lira.

Fonte: Favpng.com[4].

Em sua estrutura formal, a lira é análoga ao signo astrológico de Orfeu, porém, com um detalhe que faz toda a diferença: as “almas em oposição” representadas pelos semicírculos realizam uma conjunção através de uma ponte de cordas musicais. Emitindo sons e fazendo música, as cordas são, para essa figura mítica, a via de acesso ao Hades. A lira, representando a música, portadora de propriedades que transcendem o intelecto e favorecem a sensibilidade, torna-se então um canal essencial para a empreitada de Orfeu ao Hades.

A música então torna-se um psicopompo, uma guia de almas:

De que magia a música retira este poder de nos transportar de um estado para um outro? Do ponto em que estávamos antes de pegar esse meio de transporte, eis-nos em outro ponto, após uma estranha viagem cujos meandros eu gostaria de tentar delinear (DIDIER-WEILL, 1997a [1976], p. 57-58).

Noto que a cada vez que estou em algum processo de criação, seja compondo um verso para uma música nova ou trabalhando os próprios sons, é como se eu visitasse uma Eurídice no meu próprio Hades.

Quando uma música nos toca, é como se nos (re)encontrássemos com uma questão viva que até então estava adormecida. A música então simbolicamente atuaria como Orfeu no mito: nos levaria para lugares obscuros e vitais. Nesse sentido, talvez a música “que não sai da cabeça” ou aquele enérgico cantarolar catártico num show ou debaixo do chuveiro seja uma forma da alma comunicar questões próprias que foram despertadas pela música, que a convidaram para a dança. O grude como meio expediente para nos conectar com uma questão importante. O canto como forma de fixar – e, por que não elaborar, digerir psiquicamente? – algumas respostas-questões na própria alma: ao passo que sou tocado pela música-questão, canto uma música-resposta que, por sua vez, poderá gerar outros questionamentos.

Voltemos ao mito: Orfeu vai atrás de um alguém, ou melhor, de uma figura que lhe é muito cara. Não ouso definir aqui o que de fato representa essa figura, pois para cada Orfeu haverá uma figura-Eurídice que, por conseguinte, poderá assumir múltiplas formas. Ao mesmo tempo que uma música nos toca ou tentamos tocá-la, como num processo de composição, é como se ocorresse o movimento da descida de Orfeu desejando reencontrar sua Eurídice nas profundezas do submundo.

Notas finais

Ain’t no sunshine

Ain’t no sunshine when she’s gone

It’s not warm when she’s away

Ain’t no sunshine when she’s gone

And she’s always gone too long

Anytime she goes away (WITHERS, 1971).

Orfeu vivo adentrou o mundo dos mortos tocando sua lira para resgatar sua amada Eurídice. Esse evento jamais aconteceu literalmente em uma época ou local determinados, entretanto, podemos dizer que essa cena está simbolicamente acontecendo a todo momento. Independentemente se Orfeu teve êxito ou fracasso em resgatar sua alma metade, a imagem de sua descida ao mundo das trevas através da música permanece ressoando em nossas almas.

Inspirado por uma cena narrada[5] pelo mitólogo Joseph Campbell (2002), não diria que alguns de nós estão agindo como Orfeu, mas que estão sendo Orfeu. Vejo-me otimista ao imaginar que, no caso de falha no resgate de Eurídice, a inevitável experiência da perda talvez fizesse Orfeu cantar mais e melhor. Seria uma daquelas experiências fortalecedoras.

Neste parágrafo final, ocorreu-me que a expressão “o canto do cisne” talvez sintetize o que venho buscando com esse texto: popularmente, ela se refere ao esforço final de uma pessoa para realizar algo de notável antes de sua morte. No mito de Er de Platão (1991) onde as almas podem escolher a próxima vida, o cisne é o animal escolhido pela alma de Orfeu para renascer, ou seja, é um símbolo deste. A música torna-se um meio não só de acesso, mas de expressão e transformação da experiência do sofrer: musicar em vida é diferente de musicar em direção ao ou no próprio Hades. O canto do cisne, nosso Orfeu, então remeteria às nossas próprias tentativas musicais de acessarmos nossa Eurídice no mundo das trevas e, através dessa experiência simbolicamente fatal, retornarmos diferentes, com a alma alargada.

Referências

BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. v. 2.

CAMPBELL, J. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo, SP: Landy, 2002.

DIDIER-WEILL, A. Nota azul: Freud, Lacan e arte. Tradução: Cristina Lacerda; Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1997.

GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

JUNG. C. G. Psicologia e alquimia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. (Obras completas de C. G. Jung, v. 12).

JUNG, C. G. A vida simbólica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Obras completas de C. G. Jung, v. 18/1).

PLATÃO. Diálogos [Banquete; Leis; República(IV a.C.)]. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores)

WHITERS, B. Ain’t no sunshine [1971]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YuKfiH0Scao&ab_channel=BillWithersVEVO. Acesso em: 19 fev. 2021.


[1] Psicólogo, psicoterapeuta de orientação junguiana, músico e facilitador de workshops sobre Psicomusicalidade. E-mail: <contato@julioito.com.br>

[2] ITO, J. C. N. Música: uma possível ampliação de recursos no setting analítico. Junguiana,  São Paulo ,  v. 36, n. 1, p. 9-18,   2018 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-08252018000100004&lng=pt&nrm=iso>.

[3] Os mortos são obrigados a pagarem com uma moeda a travessia de barco para a outra margem do rio Aqueronte, meio de travessia para chegar ao Reino de Hades, que está cheio de lodo, junco e quase estagnado. Explica-se assim o costume de deixar uma moeda na boca de cada morto. Cf. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

[4] Disponível em: <https://favpng.com/png_view/musical-symbols-lyre-harp-musical-instruments-png/ekMsAk26> . Acesso em 16 fev. 2021.

[5] Joseph Campbell, numa entrevista de rádio, pediu um exemplo de metáfora para o radialista que o entrevistava e este respondeu que seu amigo era rápido como um cervo. Em seguida, Campbell  corrigiu-o dizendo que seu amigo era um cervo. Essa cena marca o (mal) entendimento sobre o mito se expressar metaforicamente. Cf. CAMPBELL, J. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. São Paulo, SP: Landy, 2002.

POST A COMMENT

Your email address will not be published. Required fields are marked *

You may use these HTML tags and attributes: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>